sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Emancipação e solidariedade

por Cynthia A. Sarti

A segunda metade do século 20 foi, sem dúvida, o momento privilegiado da emancipação feminina. A difusão da pílula anticoncepcional, a partir dos anos 1960, e a entrada da mulher no mercado de trabalho, no mesmo período, foram dois processos emblemáticos das novas possibilidades que se abriram para a mulher: o controle e determinação sobre seu próprio corpo e a independência econômica. Foram tempos de euforia, expectativas, transgressão. Poucas experiências históricas, no espaço de menos de meio século, conseguiram mudanças sociais tão radicais, cujo alvo principal foi o sistema familiar patriarcal.

O trabalho remunerado implicou uma mudança significativa no modo de vida das mulheres com qualificação profissional, por lhes dar condições de romper com o padrão tradicional de divisão sexual da geração de suas mães e avós, que “não trabalhavam” (leia-se remuneradamente), alterando, assim, a organização de sua vida familiar.

Essas mudanças incidiram, em particular, sobre a autoridade na família, redefinindo-a, tanto na relação entre homem e mulher como entre pais e filhos, diante da renda dupla do casal e das mudanças no cuidado infantil, transferido também para a esfera pública, com a incorporação das creches ao cotidiano das crianças, desde pequenas. Essas possibilidades surgem com o crescimento econômico e a expansão do sistema educacional brasileiro nos anos 1960 e 1970, permitindo também às mulheres, movidas pela disseminação do ideário feminista de ampliar as fronteiras do mundo feminino para além dos limites domésticos, o acesso à educação superior e ao mercado de trabalho.

A abertura de espaços para as mulheres, no sentido de sua independência em relação aos papéis sexuais tradicionais, no entanto, tem limites no que se refere às relações entre homem e mulher, que não acompanham as mudanças em toda sua extensão, causando inúmeros desencontros e dificuldades na vida afetiva a dois. Além disso, esse processo tem marcas de classe e de cor e as oportunidades não se apresentam da mesma maneira para todas as mulheres brasileiras. Apesar de significativas mudanças sociais e culturais, o Brasil continua um país marcado por hierarquias de classe e de raça.
Houve perdas? Talvez. Situações de subordinação social tendem a gerar mecanismos de compensação, e as mulheres, nos sistemas patriarcais, desenvolvem, ?com maestria, formas diversas de manipulação e poder informal que lhes garantem uma boa quota de benefícios. Perder esses espaços de mando dissimulado, para quem deles se beneficia, tem um preço.

O lugar feminino tradicional, que identifica a mulher com a mãe, esposa e dona-de-casa, enquanto o homem, trabalhador, se responsabiliza pelo sustento familiar, é, em muitos sentidos, um lugar infantilizado, porque tutelado. Espera-se, nesse registro, que o homem, “chefe da família”, responsabilize-se pela família e faça a mediação entre a família e o mundo externo. Simone de Beauvoir disse, em seu livro O Segundo Sexo, que a mulher não tinha uma existência própria, por ser referenciada pelo homem. Ela era o seu “outro”, imagem refletida. A Constituição Brasileira de 1988 mudou esse quadro. Eliminou a “chefia conjugal”, atribuída até então ao homem, e transformou a sociedade conjugal em uma instância de direitos e deveres iguais.
A mulher, hoje, dispõe igualmente dos direitos civis, políticos e sociais garantidos ao homem na legislação brasileira. Ela vota, tem acesso à educação formal e ao trabalho, tem direito de propriedade, de ir e vir, como qualquer cidadão. No Brasil, ela é cidadã, com os mesmos direitos e deveres atribuídos ao homem.

Passou o tempo em que as mulheres, como a escritora George Sand, se disfarçavam de homem para exercer seu ofício e ter lugar num mundo dominado por homens. As mulheres estão presentes em praticamente todas as profissões, ainda que as diferenças de gênero determinem formas diferenciadas de acesso ao mercado de trabalho. Profissões associadas ao cuidado, como a de professora de crianças ou de enfermeira, continuam sendo redutos femininos. Em carreiras prestigiadas socialmente, como medicina e direito, as conquistas femininas ainda requerem habilidades técnicas excepcionais que as destaque, porque sua presença não é facilmente assimilada. O mesmo acontece com mulheres em cargos de direção. Os caminhos da mudança cultural são lentos, não seguem uma linearidade, há ambiguidades, avanços e retrocessos. Mudanças são aceitas em certas esferas sociais, em outras há resistências, quando não um combate explícito. A violência pode configurar uma forma de reação a conjunturas em que as coisas saem do lugar habitual e não encontram outro lugar onde se situar.

No entanto, mesmo provocando reações contrárias, como sempre acontece em períodos de mudanças culturais, a emancipação feminina foi instaurada, com êxito, pelo menos, no mundo que chamamos de ocidental. Neste século 21, a mulher emancipada enfrenta as implicações e consequências de sua própria emancipação. Desfruta de sua autonomia, sua sexualidade, suas escolhas e tem a responsabilidade, ela própria, perante seus atos e decisões. Ela não está mais “protegida” pela redoma do mundo familiar tradicional. A autonomia conquistada implica o enfrentamento com o mundo tal como ele é, sem mediações.

A presença feminina trouxe questões inesperadas para o mundo público, que ainda não estão adequadamente codificadas, particularmente na esfera do trabalho. Homens e mulheres convivem e frequentam os mesmos espaços. É raro, hoje em dia, um espaço público em que essa convivência não exista. Não há mais lugares reservados a um e outro sexo, tampouco espaços delimitados de encontro entre os sexos. Assim, há que se lidar com as questões que envolvem a convivência permanente entre homens e mulheres. O espaço das relações profissionais e o das relações amorosas misturam-se e o mundo do trabalho torna-se também o cenário privilegiado de trocas afetivas e sexuais. Encontros e desencontros acontecem. Assédio sexual e assédio moral, modalidades perversas de relações entre o homem e a mulher no mundo do trabalho ganham espaço nessa convivência inevitável e mal assimilada, agravadas pelo contexto de fronteiras imprecisas e muita competitividade, em que os limites entre um e o outro não são claros, propiciando o abuso. Novas situações, novos problemas.

Ainda que o movimento feminista tenha sido inquestionavelmente benéfico para todas as mulheres, ao garantir seus direitos básicos e, assim, mudar o estatuto da mulher na sociedade, a emancipação feminina perdeu os ares de rebeldia, o tom de euforia de décadas atrás. Perdeu-se o encanto das lutas libertárias. Vivemos, em certo sentido, sob o signo do desencanto. Não pelo insucesso, foram muitas as conquistas e mudamos, para melhor, o patamar de nossas vidas, mas porque nos resta, hoje, lidar com o que somos, com o que nos tornamos, depois de tudo. E desejos, anseios, expectativas e esperanças de mudar o mundo são sempre maiores do que os resultados efetivos.

As novas gerações de mulheres não parecem interessadas nas lutas feministas. A condição feminina não se constitui em problema existencial para as mulheres jovens, hoje. Os grupos sociais que pensamos como discriminados, que são objetos de preconceitos e outras formas de violência, não estão prioritariamente associados à condição feminina, ainda que a atravessem. As mulheres continuam a ser perversamente violentadas, em casa e nas ruas, mas não apenas elas. Tivemos recentemente notícia de estupros masculinos, em situações de conflito, forma de humilhação contra os homens que também começa a ter visibilidade. Vivemos sob o signo da violência generalizada, contra homens, mulheres, velhos, crianças, homossexuais, pobres, negros, etnias diversas.

A maior conquista parece ser a de que a mulher saiu do lugar de vítima, ela é dona do destino que traçou para si. Não precisa olhar tanto para si própria, mas, num patamar de igualdade, pode unir-se a homens e mulheres e, nesse novo lugar, ser verdadeiramente solidária, porque é capaz de ir além e olhar o outro.

“Neste século 21, a mulher emancipada enfrenta as implicações e consequências de sua própria emancipação. Desfruta de sua autonomia, sua sexualidade, suas escolhas e tem a responsabilidade, ela própria, perante seus atos e decisões”

Cynthia A. Sarti é antropóloga e professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – campus Guarulhos

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